Resposta. Em 1971, época em que se podiam contar nos dedos da mão os centros de perturbações do sono existentes no mundo, o professor P. Passouant criou um novo serviço, o Service de Physiopathologie des Maladies Nerveuses (Serviço de fisiopatologia das doenças nervosas) no então brilhante Hôpital Gui de Chauliac, de Montpellier. O serviço dispunha de um piso com 28 camas de neurologia, uma unidade de eletroencefalografia, outra de eletromiografia e uma dependência totalmente equipada para as perturbações do sono, com duas camas. Naquele tempo, o professor Passouant interessava-se principalmente por epilepsia e, por isso, ali se examinaram numerosos doentes epiléticos durante toda a noite, com o objetivo de estudar a relação entre as crises e a vigília, assim como o sono lento e o paradoxal. Mas ao professor interessavam também as alterações do sono, em especial a narcolepsia, e atraiu para o seu serviço médicos interessados no sono, basicamente neurofisiologistas clínicos. Entretanto, também enviou o Dr. Billiard para a Escócia (professor Oswald) e depois para a Califórnia (professores Dement e Guilleminault). Ao seu regresso de Stanford (1974), o Dr. Billiard impulsionou o centro de perturbações do sono, ampliando tanto o número de camas como o de colaboradores, e, desde então, dúzias e dúzias de médicos provenientes de toda Europa, Norte de África, Oriente Próximo e América Latina chegaram a Montpellier para receberem formação no campo da medicina do sono.
R. Não tenho a certeza que graças a esses artigos se tenha diagnosticado a síndrome de Kleine-Levin em centenas de mulheres supostamente deprimidas. Mas é provável que o primeiro artigo tenha chamado a atenção para essa rara perturbação, anteriormente conhecida como hipersónia da menstruação, e o segundo a casos femininos da mesma, considerados inicialmente como excecionais ou inexistentes (Critchley, 1962). De facto, na nossa série de 293 doentes afetados pela síndrome primária, 232 eram homens e 61 eram mulheres (razão de sexos de 4:1).
R. O modafinil, utilizado experimentalmente em França pelo prof. Jouvet desde 1983, presumiu uma verdadeira revolução no tratamento da narcolepsia, em virtude da sua eficácia e do perfil favorável de reações adversas. Após vários estudos de desenho aberto realizados em França entre os anos 1985-1990, houve um primeiro ensaio multicêntrico aleatorizado e controlado com placebo (Sleep, 1994), ao qual se seguiram os grandes ensaios clínicos norte-americanos. Embora o efeito do modafinil sobre o despertar seja causado pela inibição da recaptação de dopamina, o mecanismo preciso não é completamente conhecido. Depois apareceu o sal sódico do γ-hidroxibutirato (oxibato de sódio), recomendado já em 1975 por investigadores canadianos e autorizado nos Estados Unidos para o tratamento da cataplexia desde 2002 e da sonolência diurna excessiva desde 2005. A difusão deste fármaco constituiu outra nova revolução em virtude da sua eficácia sobre os sintomas relacionados com o sono paradoxal e sobre a sonolência diurna excessiva, assim como pelo seu perfil favorável de reações adversas quando tomado nas doses recomendadas, seguindo o ajuste progressivo da dose e sem a concorrência de uma síndrome de apneia obstrutiva do sono significativa nem de depressores da respiração. O oxibato de sódio ativa o recetor do ácido γ-aminobutírico de tipo B, embora o mecanismo de ação não esteja totalmente esclarecido. Por seu lado, o pitolisant é um agonista inverso do recetor histaminérgico H3 que reduz substancialmente a sonolência diurna excessiva em relação ao placebo e é bem tolerado. Este medicamento já é dispensado em França com uma autorização temporária e está prestes a ser aprovado pela Agência Europeia do Medicamento. Dado este ponto de situação, seria prematuro definir o seu lugar em relação ao modafinil e ao oxibato de sódio no tratamento da sonolência diurna excessiva.
R. Na Europa, na década de oitenta já se conduziram estudos epidemiológicos no campo da síndrome de apneia obstrutiva do sono e das hipersónias de origem central, pela mão de Lugaresi e do seu grupo em Itália, seguidos por vários países nórdicos, como Finlândia, Suécia, Dinamarca ou Islândia. Em relação ao papel dos fatores ambientais na narcolepsia, publiquei com a minha equipa um primeiro estudo intitulado ‘Acontecimentos vitais no ano anterior ao início da narcolepsia’ (Life events in the year preceding the onset of narcolepsy. Sleep, 1994), onde revelava que o início está vinculado com a frequência de diversos episódios inespecíficos, como infeções, stress psíquico ou a modificação abrupta do ritmo da vigília e do sono. A este primeiro estudo seguiram-se outros estudos valiosos. Maior interesse possuem, no entanto, vários estudos centrados na sazonalidade do nascimento, certos agentes infeciosos e o traumatismo crânio-encefálico. As doenças infeciosas habitualmente apresentam variações sazonais que poderiam ficar reflexas no padrão cronológico do nascimento dos indivíduos afetados. No caso da narcolepsia, diversos estudos revelaram um máximo no mês de março e um mínimo no de setembro no padrão de nascimento dos doentes afetados pela narcolepsia de tipo 1. Esse predomínio sazonal dos nascimentos aponta para a implicação de fatores ambientais que incidem nos primeiros meses de vida, e que interagiriam com a predisposição genética para causar danos no sistema da hipocretina. É noto que as infeções das vias aéreas superiores, como as causadas por Streptococcus pyogenes ou pelo vírus da gripe, atuam como desencadeantes da narcolepsia, pelo menos em crianças. A faringite estreptocócica precede frequentemente o aparecimento da narcolepsia, e os narcolépticos de início recente costumam dar com frequência positivo para anticorpos antiestreptolisina-O, um marcador de Streptococcus pyogenes. Da mesma forma, na China e em outros países, o número de crianças com narcolepsia de novo aparecimento multiplicou-se entre três e cinco vezes em relação aos anos anteriores durante a primavera e verão de 2010, com um máximo entre quatro e seis meses após o pico da infeção pelo vírus H1N1. Por fim, os traumatismos crânio-encefálicos também podem provocar a narcolepsia, mas dado o caráter leve ou moderado que em geral tem este tipo de traumatismos, é mais provável que o início da narcolepsia esteja associado ao stress do que a uma lesão neurológica aguda. Mesmo assim, é necessário prosseguir os estudos de epidemiologia ambiental que investiguem sistematicamente as exposições ambientais que favorecem ou que que protegem face à narcolepsia.
R. De acordo com os estudos clínicos, a distinção entre hipersónia idiopática com e sem prolongamento do tempo total de sono foi posta em dúvida pela ausência de sintomas que sejam específicos de um dos subgrupos (por exemplo, a grande dificuldade para despertar ou a embriaguez do sono afetam ambos). Da mesma forma, na sequência de vários estudos, também puseram em questão a validade da latência média no teste de latências múltiplas do sono que forma parte do diagnóstico da hipersónia idiopática. Por tudo isso, tal perturbação já não se pode dividir em duas formas, isto é, com ou sem prolongamento da duração total do sono (ICSD-3). Não tenho conhecimento de nenhum estudo em curso, à exceção da análise de agrupamentos a que me referirei mais tarde, que sustente a sua divisão em duas formas. Contudo, Bedrich Roth, o grande neurologista e especialista do sono checo, primeiro a cunhar o termo de hipersónia idiopática, distinguiu duas formas daquela: a monossintomática e a polissintomática. Desta forma, a porta continua aberta às duas formas da hipersónia idiopática, tal e como indica a ICSD-3, que afirma que ‘Os médicos quererão continuar a considerar a duração do sono como uma caraterística clínica importante’ e que ‘qualquer outra divisão da hipersónia idiopática em perturbações distintas terá que aguardar novos avanços no conhecimento da sua biologia’.
R. Através de uma análise hierárquica de agrupamentos, ou clusters, (Sleep Med, 2015) que incluiu quatro tipos de doentes, narcolépticos com e sem cataplexia e afetados por hipersónia idiopática com e sem prolongamento do tempo total de sono, constatámos que ambas as formas de hipersónia pertencem a agrupamentos distintos, enquanto os doentes com hipersónia idiopática sem prolongamento do sono e os afetados por narcolepsia de tipo 2 pertencem ao mesmo agrupamento. Até agora não se demonstrou que exista carência de hipocretina na narcolepsia de tipo 2, exceto em casos pontuais. Contudo, esse tipo de narcolepsia é uma doença heterogénea.
R. Quando se contempla a história da investigação da narcolepsia na Europa desde as suas origens, resulta evidente que vários grupos estiveram a trabalhar separadamente. Surgiu então a necessidade de estudos tais como os de associação de genes candidatos aos estudos de associação genómica, os quais exigiam um maior número de doentes e referências, que estimularam esses grupos a cooperar. Por outro lado, entre os investigadores europeus cresceu a motivação para não depender exclusivamente do grupo de narcolepsia de Stanford e de desenvolver a sua própria competência. Isso explica a criação da Rede Europeia da Narcolepsia e o extenso volume de dados obtido até ao momento. O passo seguinte, já em marcha, consiste em elaborar protocolos comuns de investigação a partir desse conjunto de dados com vista a melhorar o conhecimento do fenótipo da narcolepsia, a fisiopatologia da doença e a descoberta de novos tratamentos.Dra. Rosa Peraita Adrados